"A medida do amor é amar sem medida" Santo Agostinho

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O NARIZ, Luiz Fernando Veríssimo


Era um dentista, respeitadíssimo. Com seus quarenta e poucos
anos, uma filha quase na faculdade. Um homem sério, sóbrio, sem
opiniões surpreendentes mas uma sólida reputação como profissional e
cidadão. Um dia, apareceu em casa com um nariz postiço. Passado o
susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância. Era um daqueles
narizes de borracha com óculos de aros pretos, sobrancelhas e bigodes
que fazem a pessoa ficar parecida com o Groucho Marx. Mas o nosso
dentista não estava imitando o Groucho Marx. Sentou-se à mesa do
almoço — sempre almoçava em casa — com a retidão costumeira,
quieto e algo distraído. Mas com um nariz postiço.
— O que é isso? — perguntou a mulher depois da salada, sorrindo
menos.
— Isto o quê?
— Esse nariz.
— Ah. Vi numa vitrina, entrei e comprei.
— Logo você, papai...
Depois do almoço, ele foi recostar-se no sofá da sala, como fazia
todos os dias. A mulher impacientou-se.
— Tire esse negócio.
— Por quê?
— Brincadeira tem hora.
— Mas isto não é brincadeira.
Sesteou com o nariz de borracha para o alto. Depois de meia hora,
levantou-se e dirigiu-se para a porta. A mulher o interpelou.
— Aonde é que você vai?
— Como, aonde é que eu vou? Vou voltar para o consultório.
— Mas com esse nariz?
— Eu não compreendo você — disse ele, olhando-a com censura
através dos aros sem lentes. — Se fosse uma gravata nova você não
diria nada. Só porque é um nariz...
— Pense nos vizinhos. Pense nos clientes.
Os clientes, realmente, não compreenderam o nariz de borracha.
Deram risadas (“Logo o senhor, doutor.”), fizeram perguntas, mas
terminaram a consulta intrigados e saíram do consultório com dúvidas.
— Ele enlouqueceu?
— Não sei — respondia a recepcionista, que trabalhava com ele há
15 anos. — Nunca vi ele assim.
Naquela noite ele tomou seu chuveiro, como fazia sempre antes de
dormir. Depois vestiu o pijama e o nariz postiço e foi se deitar.
— Você vai usar esse nariz na cama? — perguntou a mulher.
— Vou. Aliás, não vou mais tirar este nariz.
— Mas, por quê?
— Por que não?
Dormiu logo. A mulher passou a metade da noite olhando para o
nariz de borracha. De madrugada começou a chorar baixinho. Ele
enlouquecera. Era isto. Tudo estava acabado. Uma carreira brilhante,
uma reputação, um nome, uma família perfeita, tudo trocado por um nariz
postiço.
— Papai...
— Sim, minha filha.
— Podemos conversar?
— Claro que podemos.
— É sobre esse seu nariz...
— O meu nariz, outra vez? Mas vocês só pensam nisso?
— Papai, como é que nós não vamos pensar? De uma hora para
outra um homem como você resolve andar de nariz postiço e não quer
que ninguém note?
— O nariz é meu e vou continuar a usar.
— Mas, por quê, papai? Você não se dá conta de que se
transformou no palhaço do prédio? Eu não posso mais encarar os
vizinhos, de vergonha. A mamãe não tem mais vida social.
— Não tem porque não quer...
— Como é que ela vai sair na rua com um homem de nariz
postiço?
— Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai.
Continuo o mesmo homem. Um nariz de borracha não faz nenhuma
diferença.
— Se não faz nenhuma diferença, então por que usar?
— Se não faz diferença, por que não usar?
— Mas, mas...
— Minha filha...
— Chega! Não quero mais conversar. Você não é mais meu pai!
A mulher e a filha saíram de casa. Ele perdeu todos os clientes. A
recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos, pediu demissão. Não
sabia o que esperar de um homem que usava nariz postiço. Evitava
aproximar-se dele. Mandou o pedido de demissão pelo correio. Os
amigos mais chegados, numa última tentativa de salvar sua reputação, o
convenceram a consultar um psiquiatra.
— Você vai concordar — disse o psiquiatra, depois de concluir que
não havia nada de errado com ele — que seu comportamento é um
pouco estranho...
— Estranho é o comportamento dos outros! — disse ele. — Eu
continuo o mesmo. Noventa e dois por cento do meu corpo continua o
que era antes. Não mudei a maneira de vestir, nem de pensar, nem de
me comportar. Continuo sendo um ótimo dentista, um bom marido, bom
pai, contribuinte, sócio do Fluminense, tudo como antes. Mas as pessoas
repudiam todo o resto por causa deste nariz. Um simples nariz de
borracha. Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o meu nariz?
— É... — disse o psiquiatra. — Talvez você tenha razão...
O que é que você acha, leitor? Ele tem razão? Seja como for, não
se entregou. Continua a usar nariz postiço. Porque agora não é mais
uma questão de nariz. Agora é uma questão de princípios.
Luis Fernando Veríssimo. O analista de Bagé.
28. ed. Porto Alegre, L&PM, 1981. p. 39-42.

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